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Querida Clarice,

E se você fosse você hoje?

Cartas poéticas para Clarice Lispector


Querida Clarice,
O que você diria se estivesse aqui hoje?
Como posso te falar do que estamos vivendo?
Uma pandemia global
Um vírus que nos mata
Nos deixa sem ar
Que coloca uma lente de aumento
em todas as nossas mazelas
Desigualdades, ignorância, intolerância
O mundo inteiro vivendo a mesma pandemia
E cada pessoa vivendo isso de uma forma diferente
Uns desempregados, famintos
Outros comprando pilhas
e mais pilhas
de papel higiênico
Você diria que perdoaria a Deus?
A esperança pousaria na sua casa?
Eu queria que você soubesse, Clarice
Ainda há felicidade clandestina
Na arte
Na literatura, poesia, música, dança, cinema...
Nos encontros (ainda que virtuais)
Me conta Clarice,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Suas palavras de outrora
Ainda me guiam e inspiram
Mas quais seriam suas palavras hoje?
Tenho tanto a te perguntar...
Será que você ficaria sem ter o que dizer
como eu também fico nos dias de maior angústia?
Será que escreveria sobre não ter palavras?
Nesse mundo que parece sem contorno?
Você estaria se sentindo sozinha
E a solitude te ajudaria a encontrar
partes escondidas da tua alma?
Você se encontraria com seu próprio mistério?
Sabe, Clarice, aqui muitas vidas são perdidas por tantos vírus:
o Corona, o do racismo, o da intolerância, o da ignorância, o da necropolítica
Os tantos "e daí" te assustariam?
Como sequer posso começar a contar deste mundo para você?
Você pode nos ver?
Você choraria toda vez que lê as notícias?
Você escreveria sobre a Marielle?
O João Pedro?
O Floyd?
Ou perderia totalmente as palavras diante de tamanha desumanidade
Mas essa sou eu
Tentando vestir você com a roupagem da minha alma
Te fazendo perguntas
(tantas sem resposta)
das minhas inquietações
Mas quais seriam as tuas?
Me conta Clarice,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Você estaria (Re)Aprendendo a viver?
Você teria mantido seu caderno de notas?
Sobre o que você escreveria?
Sobre um futuro improvável?
Sobre a revolta, o grito, a fome?
Você reviveria uma espera impaciente
pelo fim da quarentena?
Se entregaria à preguiça?
Você teria a valiosa companhia dos bichos?
Você teria um jardim para sentir os perfumes da terra?
Você escreveria sobre os nossos grandes artistas mortos?
Seria como a crônica "Desculpem, mas se morre"
versão pandêmica?
Você encontraria ainda estados de graça e alegrias mansas?
Iria contra uma maré?
Ou contra um rebanho?
Você ainda nos perguntaria: "Você é um número?"
Sinto muito em responder mas...
acredito que sim, Clarice, infelizmente
O que você estaria sentindo neste momento?
Sentiria saudades dos prazeres de uma vida normal?
Escreveria mais sobre os charlatões?
Teria mais dias de insônia feliz, ou infeliz?
Se sentiria útil?
Também não entenderia muito do que acontece?
Você teria prazer no trabalho e horas para gastar?
Você teria medo do desconhecido?
Ou estaria dialogando com ele?
Será que você ainda faria muitas conversas telefônicas?
Sentiria saudades? De quê?
Dos seus passeios de família? Dos banhos de mar?
Se poria a comer, comer?
Para preencher angústias ou para alimentar a alma?
Ainda escreveria sobre a liberdade?
A liberdade possível?
Você poderia ainda pertencer?
A você, aos outros?
Poderia ainda brincar de pensar, mesmo diante de tudo?
Isso te salvaria?
Você pensaria no que queria ter sido?
Estaria tendo muitos sonhos?
Encontraria um refúgio?
E, num instante fugaz
os momentos de lucidez perigosa
Sem aviso tudo mudou
Sim Clarice, é preciso parar!
Antes era perfeito?
Acredito que longe disso.
Como você descobriria o mundo hoje?
Ficaram os restos do carnaval...
Eu concordo com você Clarice:
que viva hoje
pois a vida é mesmo sobrenatural.
Sim Clarice, a posteridade nos julgará
Mas me conta,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Você se sentiria ainda sem respostas?
Como eu também me sinto?
Sabe Clarice, Fernando Pessoa também me ajuda
E eu concordo: amar aos outros também é salvação individual
Há vida, há sim, há tanta vida!
Poema inspirado nos títulos dos capítulos do livro "Aprendendo a viver", de Clarice Lispector.
por Bruna Berger Roisenberg

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